Nas cidades latinoamericanas, desde os anos 1990, políticas urbanísticas e de segurança pública constituem verdadeiros perímetros de intervenção excepcionalizada nas cidades. Entre demarcações territoriais e aparatos cultural-midiáticos, construiu-se um entrelaçamento entre drogas, raça e território, demilitando – em áreas populares em regiões centrais, favelas e comunidades e/ou nas quebradas e periferias – as fronteiras que separam o legal do ilegal do ponto de vista urbanístico, mas também do ponto de vista moral.
Este entrelaçamento opera na economia política das cidades de forma a definir zonas obscuras, permitindo a implantação de ”excepcionalidades”, tanto para a ação do Estado como para os mercados que ali se instalam. Do mesmo modo que, nestes perímetros, mercados ilícitos encontram licença para operar, o aparato estatal também arma ali um modus operandi “paralelo”. Simultaneamente, o Estado implanta formas violentas e coercitivas de controle territorial enquanto se beneficia dos rendimentos, inclusive políticos, dali extraídos.
Drogas e proibição
Historicamente, o uso de substâncias psicoativas possui diferentes funções e significados conforme seu papel em cada espaço geográfico-cultural (Carneiro, 2017). Contudo, os acordos restritivos globais em relação às substâncias psicoativas são recentes na história da humanidade, e estiveram ao longo deste percurso imbricados em estratégias geopolíticas de controle dos territórios (Vasconcelos, 2019). A Conferência de Xangai, em 1909, a Convenção de Haia, em 1912, e a Convenção Única de Entorpecentes realizada em Nova Iorque, em 1961, marcaram o início de uma pactuação global em torno de uma política proibicionista em relação às mais variadas substâncias no âmbito internacional (Araújo, 2012), liderada sobretudo pelos interesses geopolíticos dos EUA. Como potência econômica, os EUA passaram a hegemonizar globalmente o discurso proibicionista, principalmente após o ‘esfriamento’ da Guerra Fria nos anos 1980, quando foi necessário determinar outro inimigo, para além do comunismo, que justificasse intervenções políticas e geográficas. Deflagrou-se assim a campanha de caça e extermínio denominada de ‘Guerra às Drogas’. Na esfera global, são diversos os episódios em que as políticas de drogas justificaram interferências e rearranjos políticos locais tendo como justificativa a circulação e comércio de psicoativos1.
No Brasil, a primeira restrição oficial de uma substância é de 1827, com a adoção de uma normativa nacional contra o uso de álcool (Torquato, 2016). Pouco tempo depois, a maconha foi criminalizada acompanhando o Código Criminal do Império instaurado em 1830. Promulgada pela Câmara da cidade do Rio de Janeiro, esta lei tornou o Brasil um dos pioneiros em estabelecer restrições de controle desta substância. Vale ressaltar que a proibição da cannabis no Brasil em 1830 teve um caráter explicitamente racista, visando reprimir aglomerações de escravos, além de demonizar as culturas africanas que faziam uso da substância (Torquato, 2016)2.
O comércio e consumo das drogas declaradas ilícitas trazem consigo o atravessamento da lei, que além de ferir a moral socialmente instituída pela normativa proibicionista, implica nas altíssimas rentabilidades do negócio em função da clandestinidade e do risco envolvidos. Desta forma, o proibicionismo atua de forma pendular entre a violência das ações repressivas e os benefícios atrelados aos interesses políticos e econômicos ligados à ‘guerra às drogas’.
Territórios populares e ilegalismos
A contraposição entre a cidade “formal”, produzida no interior das normas, e os territórios populares, marca a paisagem sociopolítica das cidades brasileiras. As situações de “irregularidade” não se referem a uma configuração espacial específica, mas, sim, a múltiplas formas de viver e morar. Além disso, a ordem urbanística nunca está totalmente ausente. Por exemplo, no caso brasileiro, ainda que favelas, ocupações e “casas populares” autoconstruídas compartilhem o mesmo vasto campo das irregularidades, construir sem permissão é considerado menos ilícito do que morar nas favelas e ocupações. Além de desobedecerem às determinações das normas urbanísticas, as favelas e ocupações são formas de vínculo com o território baseadas na incerteza da posse, e não originárias da compra prévia e registrada da propriedade, tal como foi definida como modelo pela Lei de Terras de 1861 e consagrada no Código Civil de 1902.
Embora ”ïlegais”, favelas e ocupações tornaram-se, sobretudo a partir dos anos 1980, objeto de investimentos por parte de governos, que ali estenderam, de forma intermitente e discricionária, redes de serviços, infraestruturas e equipamentos. Entretanto, o forte estigma se mantém nestes locais, de tal maneira que o “favelado” é imediatamente associado a “marginal” e o território demarcado na linguagem administrativa como “subnormal”. Dessa maneira, um espaço definido por princípio como “criminoso” não é necessariamente eliminado, mas permanece na cidade como lugar permanentemente estigmatizado (Rolnik 2017). Apesar de a eliminação total representar o modo mais radical de banimento social e racial de determinados territórios e parte da população que os habitam, não é a destruição absoluta que pauta as relações entre os ‘territórios de exceção’ e suas utilidades na economia política urbana, mais sim a ambiguidade e a transitoriedade permanentes (Rolnik, 2019). São territórios submersos pela ambiguidade de categorias como legal/ilegal, legítimo/ilegítimo, autorizado/não autorizado, configurando assim o que nas palavras de Yiftachel (2009) são os gray spaces, ou espaços de sombra que transitam entre a “iluminação da legalidade, da segurança e da inserção plena nas cidades e a escuridão da remoção, destruição e morte” (Telles, 2010). As consequências práticas e políticas destas ambiguidades impostas são inúmeras. A condição de transitoriedade permanente legitima a distribuição arbitrária de investimentos urbanos, sentenciando estes territórios à precariedades sanitárias e estruturais, além de colocarem os escassos investimentos pontuais na vitrine de disputas político-eleitorais. Ademais, são estas características que estabelecem os perímetros passíveis tanto de práticas paralelas por parte dos mercados como de ‘intervenções excepcionais’ por parte do Estado .
Desta forma, estes territórios são marcados por tensões entre o Estado e o mercado em constante disputa entre o controle territorial e a governamentalidade dos lugares. Nesta disputa a violência é central: ela conecta as formas delinquenciais de extração de renda e controle de mercados com o aparato militar do Estado – sobretudo através das polícias militares – permitindo, por exemplo, que as “forças da ordem” entrem ali, e não nos bairros “formais” da cidade, atirando e matando. Finalmente, trata-se também de territórios racializados: favelas, periferias e quebradas nas metrópoles brasileiras são desproporcionalmente habitadas por não brancos e, portanto, na gestão político territorial da cidade, a criminalização das formas de morar se confunde com as marcas racistas da desigualdade.
Droga e favela: transitoriedade permanente e entorpecida
Na década de 1980, processos de reestruturação produtiva e outras mudanças no cenário global incidem em baixo crescimento econômico e aumento nos índices de desemprego e pobreza no país, especialmente nas grandes metrópoles que se industrializaram no ciclo anterior. Neste cenário, encontrar outros modos de renda e sobrevivência se tornaram imperativos ainda maiores na vida da maioria das famílias de baixa renda. Este período coincidiu com a escalada do mercado internacional de cocaína, e o tráfico de drogas tornou-se uma alternativa perfeitamente viável que enraizou a economia ilícita das drogas nos territórios populares (Carvalho, 2013).
O aumento da violência e do tráfico teve como resposta intervenções repressivas do Estado, e, assim, os anos 1990 marcaram a instauração de intervenções territoriais do poder público em lugares de consumo e comércio de substâncias. Esta combinação colocou a população moradora destes territórios em condição de dupla marginalização, seja por participar ativamente em processos de varejo ou consumo, ou indiretamente por habitar os territórios onde esta dinâmica se instalou.
Por um lado, confirmam-se modos de sobrevivência em condições de extrema violação de direitos básicos em contextos de pobreza, estigmatização e precariedade estrutural. Por outro, experimentam a exclusão da ordem cívica cidadã por meio da ilegalização e consequentemente criminalização de pessoas e lugares.
Território/droga e ajuste espacial
A territorialização do consumo de drogas em determinadas áreas das cidades preenche o pano de fundo para a implantação de projetos de modernização, ‘requalificação’ ou pacificação urbana. As representações morais, imaginárias e sociais relacionadas à ilegalidade das drogas irriga a percepção social sobre o espaço, e praticamente autoriza a execução de processos de violência e despossessão em nome da ‘guerra às drogas’. Coalizões Estado/mercado propõem, então, a “reconquista” dos lugares por meio de projetos urbanos que abrem frentes de expansão para novos produtos imobiliários, que demandam o “alisamento” do espaço – com a destruição do patrimônio material e imaterial ali presentes. Tais projetos, desenhados para “atualizar” a valorização da terra, ignoram a presença de comunidades estabelecidas historicamente nestes espaços e, sob a justificativa de se tratar de ‘vazios urbanos’, promovem processos massivos de destruição/despossessão.
No centro da cidade de São Paulo, por exemplo, o bairro dos Campos Elíseos acolhe a concentração de pessoas que fazem uso de crack, região conhecida como ‘Cracolândia’. A proximidade das estações de trem e a instalação do Terminal Rodoviário em 1961 fez o local aglutinar pensões, hotéis de baixo custo e espaços de acolhimento temporários para viajantes, migrantes e “refugiados urbanos”, aqueles destituídos de trabalho, moradia e meios de vida (Telles, 2017, p.5). A região é também marcada por uma história que acomoda a prostituição nos anos 1950, a boemia artística da “boca do lixo”, entre os anos 1960 e 1980, e, posteriormente, a territorilização do comércio e consumo de crack nos anos 1990.
Também nos anos 1990 iniciam os discursos e operações de transformação da dinâmica local, através de projetos urbanos de “revitalizaçao”, ou seja, de não reconhecimento da existência de vidas ali. Estes projetos, inicialmente por meio de grandes equipamentos culturais, e posteriormente através de parcerias público-privadas (PPP’s) para transformação radical dos usos e morfologias, se apoiam em ciclos permanentes de remoções, demolições e intervenções policiais cotidianas. Além disso, o território é marcado por grandes operações repressivas no início do século XXI , como a ‘Operação Limpa’ (2005), ‘Operação Centro Legal’ (2009), ‘Operação Sufoco’ (2012) e ‘Operação projeto Redenção’ (2017)3. Em maio de 2017, por exemplo, em meio a demolição de mais uma edificação na ‘Cracolândia’, um trator da prefeitura derrubou a parede de um imóvel que não havia sido evacuado por completo, ferindo três pessoas (Miranda et al, 2019).
A breve descrição da cena acima ilustra os efeitos do entrelaçamento a que estamos nos referindo: trajetória de desvalorização-revalorização do solo urbano para reajustes espaciais do mercado que atua sob amparo da moralidade sanitária associada à proibição das drogas. Projetos de intervenção urbana multiplicam-se como ‘solução’, ao passo que multiplicam-se também as desigualdades e violência seletivamente distribuídas. É neste cenário que a cidade torna-se ferramenta perversa que segrega, desvaloriza, demoniza e pune. O discurso é de combate ao tráfico de drogas, mas as vítimas deste massacre são as pessoas, as comunidades. É sempre importante lembrar que a região da ‘Cracolândia’ é um dos poucos territórios não-brancos encravados em pleno centro da cidade de São Paulo.
Manobra política de eliminação
Os espaços que sofrem as consequências das políticas de drogas tornam-se palco de grandes transformações, e como vimos, são os projetos urbanísticos de ‘requalificação’, ‘renovação’ ou ‘pacificação’ urbana que embasam as justificativas necessárias para a validação pública das intervenções. Porém, além da violência, as alternativas apresentadas permeiam a homogeneização dos espaços e a extinção da paisagem e das diferentes formas de vida que historicamente ocupam esses lugares. A padronização de planejamentos urbanos integrada ao mercado de ativos financeiros captura os territórios marcados pelas políticas de drogas proibicionistas para remodelação estética, ou urbanização cosmética, abrindo frentes de expansão imobiliária. O fluxo do capital negocia com o fluxo da ‘cracolândia’, encarcerando pessoas e desconstituindo territórios.
É, desta maneira, que as cidades tornam-se tabuleiros nos quais determinados lugares são eleitos para a aplicação das táticas de controle, separação e extermínio protagonizadas pelo Estado, tendo as drogas, hoje, como elemento articulador.
Notas
- Para além do explícito caráter repressivo, em vários momentos a expansão do mercado e consumo de drogas foi inclusive estimulada por interesses políticos dos EUA, como o aumento da produção de ópio no sudeste asiático nos anos 1960, ou a pulverização da cocaína pela América Central nos anos 1980 (Paley, 2018; Scott & Marshall, 1991).
- Já no momento da República, proibições oficiais da cocaína e da maconha aconteceram entre as décadas de 1920 e 1930.
- Atualmente, sete anos depois, a mesma região em São Paulo segue ritmo de escalada da violência estatal no território. Dossiê# publicado recentemente em 05 de abril de 2021 pelo movimento social denominado ‘Craco Resiste, denuncia práticas abusivas por parte da Guarda Civil Metropolitana contra pessoas em situação de rua e moradores do bairro dos Campos Elíseos onde localiza-se a ‘cracolândia’ em São Paulo. Este importante documento cruza os registros de um monitoramento por câmeras autônomas que flagraram atos de violência policial no cotidiano do bairro entre setembro de 2020 e março de 2021, com informações da Lei de Acesso à informação referente aos custos das munições ditas não letais utilizadas nas operações. O dossiê aponta que foram pelo menos 18 operações coercitivas de grande porte que contaram com a utilização deste tipo de aparatos e munição. Em média, um espetáculo de violência a cada 10 dias. https://naoeconfronto.weebly.com/dossiecirc.html
Referências Bibliográficas
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