Proibição e Saúde

Dartiu Xavier da Silveira Filho
03/05/2021

A famigerada “Guerra às Drogas” se mostrou uma falácia, representando um enorme fracasso em termos de política de enfrentamento do problema do uso indevido de substâncias psicoativas – “drogas”. Entre os problemas decorrentes desta “Guerra”, destacamos, já de início: Não reduziu a produção, a venda nem o consumo de drogas; alimentou o crime organizado, a violência e a corrupção; violou direitos humanos. 

Muitos tentam justificá-la sob o pretexto de que ela defende um bem maior: a saúde pública. O raciocínio seria algo assim como: ”A proibição dificulta o acesso do indivíduo às substâncias psicoativas, protegendo-o de entrar em contato com um produto que vai viciá-lo, fazer com que ele perca sua capacidade de autodeterminação e de autogestão, escravizando-o até consumi-lo por completo – ele se tornará um dependente de drogas”. 

Só que não…

O proibicionismo não evita o acesso à droga, mas coloca o controle deste mercado nas mãos do traficante, com consequências certamente muito mais perigosas. Assim, ao usar uma substância tornada ilegal pelo proibicionismo, o usuário acaba adquirindo um produto impuro, à qual foram adicionados outros produtos potencialmente mais danosos à sua saúde. Para ter acesso a esta droga proibida, ele terá que se colocar em risco ao ter que adentrar nas “biqueiras”, pontos de venda localizados em regiões tornadas perigosas pelo próprio proibicionismo (!). Ou seja, uma espécie de “cobra mordendo a própria cauda”, um sistema perverso que se retroalimenta… Desta forma, o usuário da substância ilícita fica muito mais vulnerável ao ser compelido a se expor a estas situações de risco tão somente pelo fato do seu produto de consumo ter sido classificado como ilegal. Para contornar tal dificuldade e se proteger desta exposição a situações adversas, este indivíduo tende a adquirir quantidades maiores da droga do que necessita. A dificuldade de acesso não coíbe a procura da droga como se argumentava, mas estimula formas mais perigosas de consumo, a começar pela própria impureza da droga e pela quantidade consumida. 

No período de 1919 até 1933 o álcool foi tornado ilegal nos Estados Unidos. Sendo produzido em alambiques clandestinos, a bebida disponibilizada continha muitos produtos inadequados para o consumo, inclusive álcool metílico, que levava à cegueira e doenças neurológicas. Outro ponto a ser destacado, com o proibicionismo o acesso ao produto foi dificultado, levando os usuários a desenvolver formas mais perigosas de consumo: para a obtenção do efeito máximo de pequenas quantidades de álcool, muitos passaram a injetar o produto. A Lei Seca americana foi o único período na História da humanidade onde se registrou uso injetável de álcool… Seguindo o mesmo raciocínio, alguns autores argumentam que o aparecimento do “crack” – cocaína fumada – foi consequência do acirramento das medidas proibicionistas direcionadas aos usuários de cocaína aspirada. 

O uso de drogas não leva necessariamente à perda da autodeterminação e da capacidade de autogestão. Como mostram os trabalhos epidemiológicos de Jimmy Anthony da Johns Hopkins University, a imensa maioria dos usuários de drogas, lícitas ou ilícitas, não se torna dependente, sendo os índices de dependência geralmente baixos para a maioria das substâncias (15 % para o álcool, 9 % para a maconha e  17 % para a cocaína). Algumas das substâncias ilícitas consideradas “perigosas” pelos sistemas classificatórios proibicionistas simplesmente não levam à dependência ou somente o fazem em condições excepcionais, como é o caso do ecstasy, do MDMA (metanfetamina), da quetamina e do LSD (ácido lisérgico). Além disso, os riscos relacionados ao consumo destas substâncias é infinitamente menor comparativamente aos riscos relacionados ao consumo de álcool, como nos demonstram os trabalhos de David Nutt do Imperial College de Londres. Desta forma, tais sistemas classificatórios das drogas que sustentam o discurso proibicionista são baseados em política e ideologia e não em evidências científicas.

O proibicionismo deixa subentendida a ideia de que “a droga faz o drogado”. Esta afirmação não tem sustentabilidade científica. Podemos dizer, sim, que a substância psicoativa – droga – é uma condição necessária, porém não suficiente, para que alguém se torne dependente. A maior comprovação disso é o fato de que a imensa maioria dos usuários de drogas – lícitas ou ilícitas – nunca vai se tornar dependente. Além disso, o fenômeno dependência simplesmente não é observável entre usuários de um grande número de substâncias psicoativas, como por exemplo psilocibina, ayahuasca e LSD.

O proibicionismo não diminuiu a disponibilidade das drogas ilícitas. Apenas tornou o uso destas substâncias mais perigoso. Enquanto médico que trabalha há mais de 30 anos com usuários de drogas, tenho constatado alguns pontos que gostaria de destacar aqui:

A maioria dos meus pacientes com problemas relacionados ao uso de drogas não representa o universo dos usuários. Os que me procuram são justamente aqueles para os quais o projeto de uso recreacional de drogas não deu certo. E os estudos epidemiológicos mostram que os dependentes são uma minoria. Se eu fosse basear uma política de saúde pública para o álcool no que observo entre os meus pacientes que se tornaram dependentes de álcool, eu estaria sendo injusto para com a grande maioria de consumidores recreacionais de bebidas alcoólicas que conseguem consumir moderadamente este produto sem maiores consequências para suas vidas (e até mesmo com alguns consideráveis benefícios!).

Este é um dos principais vieses das políticas proibicionistas: são baseadas em conhecimentos oriundos de experiências mal-sucedidas de uma minoria de usuários de drogas que se tornaram dependentes.

Outro ponto a ser enfatizado: Para aquela minoria de pessoas que se torna dependente e que me procura para tratamento, existe um peso enorme decorrente desta situação de dependência, com todas as dificuldades inerentes ao processo de  “largar o vício”, tais como problemas físicos, psicológicos, familiares, profissionais, de adaptação social. Porém, no caso dos meus pacientes que se tornaram dependentes de uma droga ilícita, este fardo é ainda maior, pois, além de todos os problemas mencionados, terão ainda que lidar com extorsão policial, legislação inadequada que confunde usuário com traficante, oferta de produtos adulterados de qualidade duvidosa, exposição a contextos de marginalidade, o que dificulta ainda mais sua recuperação. 

No campo da saúde pública, o proibicionismo tem igualmente dificultado as ações preventivas. O que distingue a imensa maioria de usuários recreacionais de drogas de uma minoria que se torna dependente é essencialmente a capacidade de desenvolver padrões de consumo apropriados. Se, mesmo dentro de uma política proibicionista, é possível orientar os usuários de álcool e de outras drogas lícitas sobre o que consumir, quanto consumir, quando consumir, o que não fazer durante o consumo, etc., torna-se  praticamente impossível tomar estas mesmas medidas de proteção com relação às drogas ilícitas. Ao desenvolver diversos projetos de redução de danos disseminando tais orientações preventivas junto a usuários de substâncias ilícitas, fui frequentemente acusado de estar fazendo “apologia ao uso de drogas” (!). Tal visão nada mais é do que uma deturpação do conhecimento científico decorrente da ideologia proibicionista. Certa vez estava fazendo uma intervenção de redução de danos em uma festa eletrônica onde eu orientava os participantes a respeito das drogas que eles usavam, falando sobre as quantidades que poderiam ser consumidas, que misturas deveriam ser evitadas, etc. Fui abordado por três policiais que me acusaram de ser traficante. Ao explicar o trabalho de prevenção e redução de danos que eu como médico estava fazendo, eles insistiram que eu estava estimulando o uso de drogas ilegais. Argumentei que os participantes já estavam usando aquelas substâncias e que eu apenas os orientava para que o fizessem da forma menos prejudicial possível. Impacientes, os policiais se irritaram comigo e acabaram me ameaçando “plantar” uma droga e me prender como traficante.  Acrescentaram ainda, de forma um tanto sádica: “Médico e, ainda por cima, traficante! Isto vai dar primeira página nos jornais…”.

Fico consternado ao perceber que esses policiais estavam “apenas fazendo o seu trabalho…”, sob a ótica do proibicionismo, claro… 

Ainda na prevenção, vemos as pessoas que desenvolvem problemas relacionados ao uso de drogas ilicitas, sobretudo os jovens, nos relatarem o quanto demoram para pedir ajuda especializada em decorrência do estigma associado ao fato de estarem usando uma substancia ilegal. Escondem seus problemas e dificuldades por muito tempo apenas para não terem que revelar que consomem uma droga ilícita e não sofrerem o preconceito decorrente. Frequentemente vemos as mídias relatando o caso de grandes personalidades que morrem de overdose ao evitar pedir ajuda por medo de se exporem publicamente. E a história oficial que nos contam é: “Vejam o que a droga fez com esta personalidade genial!”. A versão verdadeira, a meu ver, seria: “Vejam o que o Proibicionismo fez com esta pessoa incrível…”

As medidas repressivas no proibicionismo não se concentram na utilização dos serviços de inteligência e estratégias dirigidas a identificar os grandes traficantes e suas redes de tráfico. Ao contrário, priorizam uma “repressão do varejo”, tornando-se uma guerra às pessoas. E o público-alvo desta repressão são os usuários. Se ele for um usuário recreativo o uso de drogas não é um problema para ele, mas a proibição vai fazer deste uso um problema. Se, alternativamente, ele for um dependente, ele já tem muitos problemas com a drogas, e estes problemas serão maximizados com o proibicionismo, como mencionamos anteriormente. E existe um contra-senso aqui, na medida em que a dependência de substâncias é considerada um transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde, mas se a dependência for de uma droga ilícita o usuário vai ser considerado um criminoso. Delito ou doença, afinal? Em cima desta dualidade é que vemos políticas públicas na área de drogas proporem ações inadequadas e desastrosas que terminam por “criminalizar a pobreza” ou “penalizar a doença”. A criminalização da pobreza se refere ao fato de que diante da ambiguidade observada na tentativa de diferenciação do usuário de um traficante, acabam por serem considerados traficantes os jovens pretos, pobres e mal vestidos que moram nas favelas ou nas periferias  das grandes cidades. As arbitrariedades policiais que constatamos junto às populações desfavorecidas, em geral pretas e pobres, via de regra não se observam nos bairros ricos de brancos bem vestidos, onde supostamente os usuários são apenas usuários mesmos…

O encarceramento progressivo observado a partir da nova lei de drogas de 2006 reflete a imprecisão deste critério de classes usado na distinção usuário-traficante. 

Se a Justiça tem sido imprecisa nesta distinção e portanto impiedosa com os menos favorecidos, a Saúde repete esta imprecisão ao considerar o usuário de substâncias ilegais um doente. Caso o usuário de drogas ilícitas escape da truculência policial, dificilmente ele escapará da truculência médica. Restam-lhe duas “opções”, ambas coercitivas: encarceramento prisional ou internação compulsória. A privação de liberdade é a mesma. 

O modelo psiquiátrico vigente consegue distinguir nitidamente o usuário do dependente no caso das drogas legalizadas. No entanto, no caso das drogas ilícitas, todo usuário tende a ser considerado um doente mental. Em essência, na verdade o que está determinando a patologização ou não do uso de drogas neste caso é o Proibicionismo. A perspectiva bélica do proibicionismo (“Guerra às Drogas”) está presente tanto na Justiça como na Saúde. 

Sob o ponto de vista da Saúde, as internações involuntárias não se justificam enquanto política de saúde pública na área de drogas. Elas deveriam ser restritas às condições excepcionais indicadas na clínica: risco de suicídio, pacientes psicóticos ou risco iminente de vida. A imensa maioria dos dependentes químicos não apresenta tais condições. Além disso, mesmo as internações voluntárias têm sido questionadas como intervenção de eleição. Ao debater políticas públicas de tratamento de dependentes químicos, estudos norte-americanos e europeus estimam que com o recurso financeiro gasto com a internação de um dependente seria possível tratar mais de 50 dependentes sem o recurso da internação, com igual eficácia. Isto sem mencionarmos que, se os policiais e até mesmo os juízes confundem o usuário com o traficante, os médicos também não distinguem com clareza os usuários dos dependentes quando se trata de uma droga ilegal. A meu ver, o que permeia tais idiossincrasias é a visão proibicionista.

Dartiu Xavier da Silveira
Dartiu Xavier da Silveira Filho

Médico, analista junguiano, Professor Livre-Docente do Departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo.

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